Conheça histórias de ativistas a favor e contra o aborto, um dos temas mais sensíveis da campanha presidencial americana

Conheça histórias de ativistas a favor e contra o aborto, um dos temas mais sensíveis da campanha presidencial americana

Kamala Harris promete transformar o direito ao aborto em lei federal. Donald Trump defende que cada estado tenha sua própria lei para isso. O Sonho Americano: por que o aborto virou um dos temas mais relevantes da eleição nos EUA?
A viagem especial do Jornal Nacional pelos Estados Unidos chegou nesta quinta-feira (31) a Chicago. Nossa equipe foi investigar como o aborto se tornou um dos temas mais relevantes da eleição de 2024.
Durante toda a viagem, a equipe do Jornal Nacional conversou com muitas mulheres que estavam indo votar antecipadamente. Muitas delas disseram que estavam saindo de casa – em um país em que o voto não é obrigatório – por causa de um tema: o aborto.
Em Chicago, a equipe conversou com dois grupos diferentes de mulheres. Os dois fazem parte da história dos Estados Unidos – são temas de livros, documentários. Elas pensam diferente, mas ajudaram a moldar em todo o país uma visão não só sobre esse tema – o aborto -, mas também sobre o que significa ser mulher e qual o papel delas na sociedade.
“Quando engravidei, estava vivendo com um cara com quem eu não deveria estar vivendo. Eu estava desempregada. Era inverno. Eu estava deprimida. Eu sabia que não poderia ter um bebê. Eu simplesmente não estava saudável. Aí, eu vi um anúncio em um jornal dizendo: ‘Grávida? Não quer estar? Ligue para a Jane’. Liguei e deixei uma mensagem na gravadora. Uma mulher me ligou de volta e perguntou: ‘De quantos meses você está?’. E todas essas perguntas… E depois me disse: ‘Eu posso te ajudar’”, conta.
Ela não tinha ligado para uma mulher, mas para um grupo de mulheres que prestavam serviços clandestinos em Chicago. Uma rede que vivia no anonimato e que tinha gente de todo tipo, mas que preferiam ser chamadas apenas de Jane. O ano era 1968, de efervescência no mundo todo.
“Eu via adolescentes forçadas a terem uma gravidez porque não tinham escolha. O que as Janes faziam era mais do que um movimento feminino; éramos nós, mulheres, nos juntando e pensando no que estávamos sentindo”, afirma.
Hoje, sabemos que uma dessas Janes se chamava Martha.
“Um dia, eu estava com meus filhos no parquinho, quando outra mãe chegou perto de mim e disse que prestava apoio para mulheres que iam fazer aborto. Ela disse: ‘Não são abortos legais, mas são seguros’. Eu sabia que, porque o aborto era ilegal, era extremamente perigoso. Se você achasse que precisava de um, faria coisas mais perigosas do que ter um bebê: instrumentos inapropriados, beber veneno ou se jogar do alto de uma escada. Então, eu entrei para o grupo. Eu comecei segurando a mão das pacientes. Depois de alguns meses, eles me perguntaram: ‘Quer fazer você o aborto?’. E eu disse sim”, conta.
Conheça histórias de ativistas a favor e contra o aborto, um dos temas mais sensíveis da campanha presidencial americana
Jornal Nacional/ Reprodução
Elas alugavam apartamentos em prédios de Chicago e ficavam mudando de endereço para não serem surpreendidas. Foi em um desses apartamentos que Martha conheceu Eileen.
“Eu estava apavorada. Eu não conhecia ninguém ali naquela sala, e Martha foi muito gentil comigo. A cada segundo, eu me sentia mais leve. Três dias depois do meu aborto, me ligaram para perguntar se estava tudo bem. Eu pensei: ‘Quem faz um aborto ilegal e liga para saber se estou bem?’. Eu disse para ela que queria fazer parte do grupo”, diz.
As Janes eram motoristas, conselheiras, psicólogas, e algumas delas garantiam o acesso ao procedimento em comunidades com ainda menos acesso.
“Era um momento em que as coisas estavam realmente mudando para as mulheres. Eu sabia que nunca queria casar. Eu não sonhava com um vestido de noiva. Era um momento em que se dizia: ‘Queime os sutiãs!’”, diz.
Até que um dia elas ouviram uma batida na porta.
“Era a polícia. Eles derrubaram a porta e prenderam todo mundo que estava lá”, conta Martha.
Martha foi liberada, mas aguardava julgamento no momento em que os Estados Unidos conheceram outra mulher, que curiosamente também se chamava Jane. Jane Roe. Nome que também era fictício. O nome verdadeiro dela era Norma Nelson. Uma mulher com passagens pela polícia, problemas com drogas, brigas com a família e acusações de negligência contra os filhos. Quando engravidou pela terceira vez, resolveu que não queria ter mais um filho. Acabou sendo encontrada por advogados que estavam procurando uma mulher que queria fazer um aborto ilegal no Texas.
E assim nasceu o famoso caso judicial americano chamado Roe contra Wade. Wade era o nome do procurador do Texas naquele momento. Jane Roe passou a representar o caso que processava o estado, dizendo que as leis antiaborto eram inconstitucionais.
O caso chegou à Suprema Corte. Os juízes entenderam que, na Constituição americana, está escrito que todos têm o direito à privacidade. Portanto, que as mulheres poderiam fazer um aborto. Foi uma revolução nos Estados Unidos, que também teve o efeito de dar ainda mais força para os grupos contra o aborto.
“Eu fiquei muito chocada que meu país não reconhecia o valor do bebê que eu carregava na barriga naquele momento, que a vida dela só importava se eu me importasse com ela”, diz Ann.
O marido de Ann criou uma organização não-governamental para defender que o aborto fosse proibido no país inteiro. Desde 1973, os manifestantes que se chamam pró-vida, de grande maioria de grupos católicos, fazem pressão contra o procedimento.
Até que, em 2020, morreu a juíza da Suprema Corte Ruth Bader Ginsburg. Ela defendia o direito da mulher de escolher fazer um aborto, mas sempre deixou claro que decisão judicial que liberava o procedimento em todo o país, aquela Roe contra Wade, era problemática.
Na hora da morte dela, o presidente Donald Trump prometeu substituí-la por alguém contra o direito ao aborto. E o fez: colocou em seu lugar Amy Coney Barrett. Em 2022, quando o presidente Joe Biden já estava no poder, a Suprema Corte reverteu a decisão de 1973 e acabou com a legalidade constitucional do aborto.
Ann é contra o aborto: ‘Sempre errado’
Jornal Nacional/ Reprodução
“O número de abortos na verdade aumentou desde essa decisão. Alguns estados proibiram totalmente. Mas as mulheres que podem viajam para outros estados. E há pílulas abortivas que são enviadas por correio, mesmo para estados onde o aborto é ilegal. A consulta pode ser feita pela internet”, afirma Deborah Stalberg .
Deborah Stalberg é médica e pesquisadora pela Universidade de Harvard.
“A melhor pessoa para decidir o que acontece com uma gravidez é a pessoa que está grávida. Na minha prática diária, eu vejo que são vários os motivos que podem levar uma mulher a querer interromper uma gravidez”, diz.
Os Estados Unidos estão vivendo um momento de escolha importante. Kamala Harris promete transformar o direito ao aborto em lei federal. Donald Trump defende que cada estado tenha sua própria lei para isso. É um tema tão delicado que sempre se torna um dos mais importantes da eleição.
“Uma mulher que não tem o controle sobre sua reprodução está submetida às vontades de uma sociedade que tem outros planos para ela. O sonho americano é de igualdade entre as pessoas, de algum controle sobre suas próprias vidas”, afirma Martha.
“Aborto está sempre errado. O bebê é sempre uma criança inocente. O sonho americano é o que sempre foi: um emprego que traga sustento e que contribua para a sociedade”, diz Ann.
A política é um tema muito sensível quando o tema é a vida.
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